Ciência ajuda aproveitar lodo de tratamento de água na agricultura
16-11-2022 12:20:57 Por: Cristiane Betemps, Embrapa Clima Temperado. Foto: Divulgação Corsan.
No Rio Grande do Sul, um estudo coordenado pela Embrapa Clima Temperado e realizado por especialistas de diversas instituições gerou dados e estabeleceu procedimentos para o emprego seguro do lodo de estações de tratamento de água (Leta) em solos agrícolas. O trabalho científico subsidiou a elaboração da Resolução Normativa nº 461/2022 , do Conselho Estadual de Meio Ambiente ( Consema-RS ), a primeira relacionada ao uso desse tipo de resíduo. O Leta é um grande problema de destinação para as companhias de saneamento e costuma estar disposto somente em aterros sanitários.
Participaram da pesquisa profissionais da Embrapa Clima Temperado , Universidade Federal de Pelotas ( UFPel ), Universidade Federal de Santa Maria ( UFSM ), Universidade Federal do Rio Grande ( FURG ), com o apoio técnico e financeiro da Companhia Riograndense de Saneamento ( Corsan ) eo acompanhamento da Fundação Estadual de Proteção Ambiental ( Fepam - RS ) e do Ministério Público Estadual (MP-RS).
A pesquisa mostrou que, se devidamente tratadas, as Letas podem condicionar solos agrícolas arenosos e que, sob diversas condições de aplicação, preservam a qualidade do solo e até promovem pequenos aumentos da produtividade de lavouras experimentais de milho e azevém, em circunstâncias específicas. Além disso, quando utilizado na formulação de substratos, apresentou benefícios como aumento de altura, de volume radicular e precocidade das plantas.
“Os lodos de estações de tratamento de água eram considerados um passivo; agora são convertidos em matérias-primas para fabricação de insumos e produtos para uso seguro na agricultura”, ressalta o gerente do Departamento de Inovação Tecnológica da Companhia, Jonas Kneip Araújo. “Essa realidade eleva a Companhia a outro patamar, tanto na sustentabilidade financeira, monetizando o que antes era gasto, além de promover uma economia circular, retroalimentando o sistema com menor impacto ambiental”, declara.
A Corsan realiza serviços de água e esgoto para 317 dos 497 municípios gaúchos. A companhia registra a produção de, aproximadamente, 51 mil metros cúbicos (m 3 ) de lodos de estações de tratamento de água (ETAs) e cerca de 32 mil m 3 de lodos de estações de tratamento de esgoto (ETEs), anuais.
Resultados dos estudos - Os especialistas contam que a geração dos Letas tende a aumentar, no mínimo, em uma taxa proporcional ao crescimento da população humana. “Por isso, é urgente a introdução de novas soluções para sua destinação segura e eficiente”, defende o pesquisador Adilson Bamberg , da Embrapa, que coordenou o estudo.
A pesquisa mostrou que os Letas são resíduos residuais, predominantemente, de partículas naturais de silte, argila e matéria orgânica presentes na água bruta captada de rios, lagos, barragens e poços. Essas partículas são removidas por meio de tecnologias tradicionais como a floculação, a decantação e remoção com filtros para obtenção da água tratada e os resíduos podem ser aplicados em solos de forma segura, sem riscos ao meio ambiente. “Os Letas avaliados não consideraram concentrações de metais pesados, organismos patogênicos nem contaminantes orgânicos, não sendo fonte potencial de risco para o meio ambiente”, conta a pesquisadora Rosane Martinazzo , da Embrapa .
Os solos brasileiros são, em sua predominância, consumidos, com pH menor que 6 e naturalmente pobres em nutrientes, apresentando concentrações de elementos como alumínio, ferro e manganês. “Quando aplicados aos solos, os Letas podem apresentar concentrações de alumínio, ferro e manganês em níveis que vão limitar o pleno desenvolvimento das culturas agrícolas”, ressalta Bamberg. Ele explica que isso ocorre, principalmente, devido à origem dos lodos e fatores naturais, mas também ao processo de tratamento com agente floculante à base de sulfato de alumínio, sem um processo de correção de pH. Ou seja, o dano deve-se em parte ao tratamento aplicado e, principalmente, à origem dos sedimentos que formam esses lodos, que chegam aos mananciais pela influência dos solos e por fatores naturais.
“No entanto, isso não impossibilita a destinação dos Letas em solos de forma adequada, desde que concomitante também da costumeira correção da acidez do solo”, pondera o cientista, afirmando que o procedimento preconizado mantém a proteção do meio ambiente e a manutenção da qualidade dos solos solos.
O uso de Letas tem se mostrado promissor em solos de textura arenosa e de áreas degradadas. Apesar de não aportar organismos significativos de nutrientes para as plantas, os Letas têm potencial de incrementar o teor de matéria orgânica e a aplicação pode trazer benefícios por meio da melhoria da agregação, da retenção de água e de nutrientes em solos mais resistentes.
“Outra possibilidade para os Letas é a sua utilização como matéria-prima para substratos para plantas, em combinação com os materiais comumente utilizados neste tipo de produto”, afirma Martinazzo. A pesquisadora, a doutoranda Mariana Teixeira da Silva, o pesquisador Sérgio dos Anjos e Silva , da Embrapa, e a pesquisadora Maria Helena Firmino, do Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária, antiga Fepagro, desenvolveu estudos utilizando diferentes proporções de lodo de estação de tratamento de esgoto (Lete), lodo de estação de tratamento de água (Leta), cinza de casca de arroz e vermiculita. Os substratos à base de Lete apresentaram desempenho agronômico semelhante ou superior aos substratos comerciais utilizados como referência. O Leta teve como principal destaque a elevada capacidade de troca de cátions, porém a formulação do substrato contendo essa matéria-prima ainda requer ajustes quanto à granulometria e proporção na mistura, o que será definido em estudos futuros.
Como surgiu o trabalho com os lodos - No início de 2015, a Corsan e a Embrapa Clima Temperado, sediada em Pelotas (RS), celebraram o Termo de Cooperação Técnica “Pesquisa e desenvolvimento do potencial do uso agrícola de lodos de estações de tratamento de água e de esgoto” .
No período de 2015 a 2020, a equipe de investigadores detectou no projeto, com o apoio de instituições parceiras (principalmente da UFPel, FURG e UFSM), também pela Fepam, Ministério Público Estadual e Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural ( Emater ) , desenvolveu uma série estruturada de análises e de experimentos em condições laboratoriais, em ambiente controlado e em condições de campo. Em todos os casos, foram avaliadas as letras provenientes de três municípios gaúchos: Rio Grande, Santa Maria e Gravataí, coletadas durante as quatro estações do ano.
O lodo e seu destino - Os resíduos sólidos são gerados continuamente pelas companhias de saneamento, em estações de tratamento de água que abastecem grande parte das residências que possuem água tratada. A partir da separação de sedimentos formados por partículas minerais e orgânicas presentes na água bruta coletada nos pontos de captação hídrica (rios, lagoas, barragens, poços etc.), as estações geradas os lodos, um material pastoso, composto por cerca de 75% de água e 25% de sólidos.
Estima-se que no Rio Grande do Sul sejam gerados, aleatoriamente, entre 60 mil e 100 mil toneladas em base seca desse resíduo, o qual, invariavelmente, segue para aterros sanitários, onde acaba sendo inutilizado ao ser misturado com outros resíduos sólidos sólidos no mesmo local, causando altos custos ambientais e biológicos de destinação, sem possibilidade de reaproveitamento. No entanto, a pesquisa identificou que, apesar de não apresentarem concentrações significativas de nutrientes, após serem secos e terem seu pH controlado, os Letas possuem características satisfatórias para solos arenosos e para emprego na formulação de substratos para mudas.
Como foi feita a pesquisa - Coordenada por Bamberg, a pesquisa contorno com apoio de uma equipe multidisciplinar e multi-institucional. “O trabalho foi um grande desafio. Foram cinco anos de pesquisas em diversos níveis, desde uma revisão bibliográfica, ensaios especializados em laboratórios e em casa de vegetação, até experimentos de campo. Dessa forma, foi construído todo um arcabouço de conhecimento que embasou a Resolução Normativa”, explica o engenheiro-agrônomo Ivan dos Santos Pereira.
Ele conta que foram examinados três grandes desafios: o elevado teor de umidade dos Letas, a identificação neles de elementos que permitiram o desenvolvimento dos cultivos e a realização de um estudo que representasse bem os Letas do Rio Grande do Sul.
Para responder à questão da representatividade, foram coletadas amostras em três ETAs localizadas em regiões estratégicas e com grande geração de lodo no estado. Essas estações também possuíam diferentes formas de desidratação do lodo, como a centrifugação e a secagem em sacos. “A partir dessa amostra, foi realizada uma ampla caracterização desses lodos, com a avaliação de contaminantes inorgânicos, orgânicos e patogênicos, bem como uma avaliação detalhada de parâmetros agronômicos”, relata Pereira.
De acordo com o agrônomo, os resultados indicaram que há grande similaridade entre os lodos, e as variações encontradas na composição de cada um se devem aos tipos de solos e seus materiais de origem, além do uso da terra em que se localizam os corpos d‘água dos quais é retirada a água bruta.
Ele chama a atenção para outro aspecto importante, do ponto de vista prático e de viabilidade da adoção da tecnologia: a redução do teor de água dos Letas em geral é superior a 75%. Nesse quesito, uma das alternativas mais promissoras é a utilização de centrífuga associada ao leito de secagem com cobertura plástica. A remoção do excesso de umidade possibilita o transporte do material a distâncias maiores.
“É necessário, também, neutralizar alguns elementos que podem causar a restrição do desenvolvimento dos cultivos, como o alumínio, por exemplo. Nesse sentido, foram realizados ensaios com diversos tipos de corretivos de acidez e determinadas como disposições necessárias para que esses elementos fossem neutralizados. Segundo Pereira, a calagem realizada no solo ou o aumento do pH do Leta foi eficiente para viabilizar sua utilização segura em áreas agrícolas.
Letas em solos têm vantagens econômicas e ambientais - Outros aspectos adotados do uso dos Letas em solos são os benefícios terapêuticos e ambientais, quando comparados a outras práticas de destinação final, como o seu retorno aos mananciais ou a disposição em aterros sanitários. “É impensável que hoje ainda se pratique a reintrodução desses lodos nos próprios mananciais de origem. A disposição de Letas em aterros sanitários é onerosa e substituível, por ser material de baixo risco ambiental, além de representar problema para os próprios aterros sanitários, pois se trata de material com baixa estabilidade quando incorporado a outros resíduos sólidos e depositado em pilhas e taludes ”, destaca Pereira.
“Um detalhe na aplicação do Leta em solos é a oportunidade de manutenção dos princípios da economia circular, ou seja, pela reutilização desses resíduos de forma ambientalmente adequada, devolvendo-se os Letas ao seu local de origem, os próprios solos”, diz Bamberg .
A aplicação de Letas até uma dose de 60 toneladas por hectare (t/ha), seguida de incorporação no solo e combinada com corretivo de acidez (calcário), mantém a qualidade do solo. Além disso, a incorporação de Letas corrigidas na dose de 30 t/ha manteve ou até mesmo promoveu aumentos de níveis (até 10%) da produtividade de massa de parte aérea de milho e azevém. Os resultados da aplicação de Letas em solos foram publicados nas revistas Geoderma , Land Degradation and Development, e Analytica Chimica Acta, todos de alto fator de impacto para as Ciências Agrárias.
Próximos passos - A pesquisa busca agora a geração de novos produtos derivados de Letas e a validação de insumos avaliados no âmbito da parceria desenvolvida por meio do Termo de Cooperação Embrapa-Corsan, especialmente os substratos para plantas. O trabalho também deve originar outros produtos, podendo ser classificados como insumos agropecuários: condicionador de solos arenosos à base de Letas; e substratos para plantas à base de Letas, com formulações eficientes e seguras, ajustadas para diferentes espécies vegetais.
“A parceria Embrapa-Corsan se mostrou amplamente proveitosa, pois gerou caminhos e soluções consistentes e tecnicamente viáveis para o uso sustentável de lodos de estações de tratamento de água e esgoto na agricultura”, enfatiza Bamberg.
Participantes da pesquisa - A pesquisa com Letas contorno com o apoio de estudantes de graduação e pós-graduação vinculados às universidades federais do Rio Grande do Sul: Ivan dos Santos Pereira, Alex Becker Monteiro, Mariana Teixeira da Silva, Pablo Lacerda Ribeiro, Mariana da Luz Potes e Natiele Kleemann.
Pela Embrapa Clima Temperado, participaram os investigadores Adilson Luís Bamberg, Adalberto Koiti Miura, Rosane Martinazzo, Carlos Augusto Posser Silveira, Sérgio Delmar dos Anjos e Silva e Clenio Nailto Pillon.
Pela Corsan, os principais profissionais envolvidos foram os engenheiros Moisés Benvegnú, Karla Cypriano Pieper, Jonas Kneip Araújo e Sérgio Pereira.
As informações são do Embrapa Clima Temperado.